Introdução: A prática comum de “declarar” bênçãos
É comum ouvirmos frases como: ‘Eu decreto minha vitória!’ ou ‘Eu
profetizo bênçãos sobre minha casa!’. Muitos cristãos acreditam que podem mudar
realidades com a palavra falada. Mas será que a Bíblia realmente ensina isso?
Ou estamos diante de uma crença perigosa disfarçada de fé?
Essas expressões são muitas vezes fundamentadas na ideia de que
nossas palavras têm poder espiritual criador, assim como as palavras de
Deus na criação. A lógica é: “Se fomos feitos à imagem de Deus e Ele criou tudo
com palavras, também podemos criar com a nossa boca.”
Mas o que a Bíblia realmente ensina sobre isso? Podemos
decretar e determinar bênçãos com nossa palavra? Existe base bíblica legítima
para essa prática? Ou será que estamos diante de um erro perigoso disfarçado
de fé?
1.
A
origem da prática de "declarar" e "decretar" bênçãos
A prática de declarar ou decretar bênçãos com autoridade não vem
da Bíblia nem da Igreja Primitiva. Ela surgiu no século XX com E. W. Kenyon e
foi popularizada por Kenneth Hagin, no movimento chamado Palavra da Fé.
Influenciados por ideias do Novo Pensamento, esses líderes passaram a ensinar
que palavras têm poder espiritual criador.
No Brasil, essa doutrina chegou com o neopentecostalismo,
especialmente com a Igreja Universal e a Igreja da Graça, espalhando-se depois
por músicas, mídias e até igrejas tradicionais.
A teologia reformada e bíblica critica essa prática por colocar
o homem no centro, distorcer textos bíblicos e prometer o que Deus não
prometeu. A fé bíblica não declara o futuro com palavras de poder, mas confia
humildemente na soberania de Deus.
2.
A
base bíblica usada por quem defende o “poder da palavra”
A principal inspiração vem de Gênesis 1:
“Disse
Deus: Haja luz; e houve luz.” (Gênesis 1:3)
“E
disse Deus: Haja firmamento...” (Gênesis 1:6)
“Disse
também Deus: Produza a terra relva...” (Gênesis 1:11)
Vemos essa repetição de “disse Deus” em praticamente toda
a obra criadora. Isso mostra que a palavra de Deus tem poder criador,
imediato, absoluto e soberano.
Com isso, afirma-se que, se Deus criou com a palavra e somos
Sua imagem, também podemos criar com a nossa fala.
Mas há um grande erro aqui:
O poder criador da palavra é exclusivo de Deus, não é
compartilhado com os homens.
Fomos criados à imagem moral e espiritual de Deus: com
capacidade de relacionamento, criatividade, domínio sobre tudo o que foi criado
e responsabilidade sobre os mesmos, mas não com Seus atributos divinos,
como a onipotência, onisciência, onipresença ou a capacidade de criar
realidades do nada com a fala.
3.
A
verdade por trás do poder criador: Jesus Cristo é a Palavra
A Bíblia explica que a Palavra que criou tudo no princípio
era o próprio Cristo:
“No
princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.” (João
1:1)
“Todas
as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito
se fez.” (João 1:3)
“E o
Verbo se fez carne e habitou entre nós...” (João 1:14)
A palavra “Verbo” (em grego: Logos) significa mais do que
fala: é a ação criadora de Deus, a expressão de Sua vontade, o agente por
meio do qual tudo foi feito.
Cristo é a Palavra que sai da boca do Pai e realiza tudo
conforme a Sua vontade. Ele é o poder criador e não há nenhum versículo
dizendo que esse poder foi transferido aos homens para usarem conforme
sua própria vontade.
A Bíblia mostra que somente Deus chama à existência as coisas
que não existem (Romanos 4:17).
Ser a imagem e semelhança de Deus não nos concede atributos
divinos como a onipotência, onipresença, ou o poder criador absoluto, apenas
Cristo é a imagem real de Deus, somente Ele é como Deus.
Conclusão: Não somos pequenos deuses
com poder de criar realidades. Somos servos chamados a crer, confiar e
obedecer.
4.
O
risco de colocar o homem no centro
A ideia de que podemos declarar ou decretar vitórias, conquistas
ou curas parte do pressuposto de que o poder está em nossa fala, e não
mais nas mãos de Deus. Essa doutrina dá ao homem o papel de "ativar"
a bênção, como se Deus apenas reagisse às declarações humanas. Essa crença
conduz a uma teologia centrada no homem, não em Deus.
“Muitos
propósitos há no coração do homem, mas o desígnio do Senhor permanecerá.”
(Provérbios 19:21)
“Venha
o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu.” (Mateus
6:10)
Quando o cristão acredita que pode “criar” ou “chamar à
existência” bênçãos com sua fala, está tomando para si um atributo
exclusivo de Deus:
“... o
Deus que vivifica os mortos e chama à existência as coisas que não existem.”
(Romanos 4:17)
Esse poder não foi dado ao homem. Colocar a confiança em suas
próprias palavras em vez da vontade de Deus é um tipo sutil de idolatria,
onde o próprio “eu” toma o trono.
Logo, a crença de que “minhas palavras
determinam minha realidade” é uma forma sutil de idolatria, pois:
- Tira o controle de Deus;
- Dá ao homem o “poder criador”;
- Faz Deus parecer um servo que realiza nossos decretos.
Deus
não nos deu autoridade para criar realidades com a fala: nos deu o
privilégio de orar, confiar e obedecer.
5.
E
os textos que parecem dar apoio?
Algumas passagens são usadas fora de contexto:
a)
Josué e o sol parado (Josué 10:12-14)
Josué ordena que o sol e a lua parem, e Deus atende sua voz.
Mas esse é um ato milagroso e único, registrado como
exceção, e não como modelo para ser repetido. O texto deixa claro: “nunca
houve dia como aquele... em que o Senhor ouviu assim a voz de um homem.”
(v.14)
b)
Jesus e a figueira (Marcos 11:12-14, 20-24)
Jesus amaldiçoa a figueira, e ela seca. Depois diz:
“Qualquer
que disser a este monte: Ergue-te e lança-te no mar... e crer que se fará o que
diz, assim será.” (Marcos 11:23)
Esse ensino é sobre ter fé verdadeira em Deus, não na
palavra humana. Jesus não ensina que qualquer um pode sair por aí
decretando coisas. Ele ensina que, quando oramos com fé em Deus, sem
duvidar, Ele pode fazer o impossível.
Além disso, a ação de Jesus é única porque Ele é Deus. A
maldição à figueira é uma lição viva sobre a improdutividade espiritual de
Israel, e não um exemplo de que palavras humanas têm poder criador.
c) Provérbios 18:21 – A morte e a vida estão
no poder da língua
Esse versículo é usado para justificar a ideia de que a boca
“tem poder espiritual criador”:
“A
morte e a vida estão no poder da língua; o que bem a utiliza come do seu
fruto.” (Provérbios 18:21)
Mas esse provérbio trata do impacto das palavras no convívio
humano. Nossas palavras podem:
- Edificar ou destruir relacionamentos
- Levar alguém à verdade ou ao engano
- Levar à paz ou ao conflito
Ou seja, a língua tem poder moral e relacional, não poder
criador espiritual como a de Deus.
6.
Devemos
declarar como se já tivéssemos recebido?
Essa dúvida é comum diante de textos como:
“A fé é a certeza de coisas que se esperam, a
convicção de fatos que se não veem.” (Hebreus 11:1)
“Crê que o recebestes, e será assim
convosco.” (Marcos 11:24)
Mas atenção:
- A fé não é fingimento,
nem “afirmação positiva”.
- Não é declarar como se tivesse acontecido:
é crer que Deus pode fazer no tempo e forma certos.
Exemplo: Abraão creu, mas não
saiu dizendo que Isaque já tinha nascido. Ele confiou em Deus e esperou.
7.
Jesus
condena o uso presunçoso das palavras para garantir o futuro
Em Mateus 5:33–37, Jesus confronta diretamente a prática dos juramentos, onde as
pessoas tentavam dar peso e autoridade às suas palavras para garantir
que algo iria acontecer, mesmo sem ter controle sobre isso.
Ele diz:
“De modo nenhum jureis; nem pelo céu, por ser
o trono de Deus; nem pela terra, por ser estrado de seus pés... Nem jures pela
tua cabeça, porque não podes tornar branco ou preto um só cabelo.” (Mateus
5:34–36)
Jesus está, na verdade, condenando a presunção de que podemos
assegurar com nossas palavras aquilo que apenas Deus pode realizar. Os
judeus da época usavam expressões como:
- “Juro pelo céu que farei isso...”
- “Pela minha cabeça, vai acontecer...”
- “Eu determino que vai acontecer...”
Essas frases eram tentativas de conferir força espiritual e
autoridade pessoal às promessas, o que frequentemente resultava em hipocrisia,
manipulação e autoengano.
Jesus então nos lembra: não controlamos nem os pequenos
detalhes da vida, quanto mais os desígnios espirituais ou o futuro.
Isso desmonta completamente a ideia moderna de “decretar” curas, bênçãos,
prosperidade, ou qualquer outra coisa, como se o poder estivesse na palavra
humana.
“Seja, porém, a tua palavra: sim, sim; não,
não. O que passar disso vem do maligno.” (Mateus 5:37)
Jesus nos ensina, portanto, a falar com simplicidade, verdade
e humildade, reconhecendo nossa total dependência da vontade de Deus.
8.
Palavras
que têm valor aos olhos de Deus
A Bíblia ensina que Deus ouve a oração sincera, a confissão
de fé e a declaração de confiança nEle, mas sempre de acordo com Sua
vontade:
“Esta
é a confiança que temos para com ele: que, se pedirmos alguma coisa segundo a
sua vontade, ele nos ouve.” (1 João 5:14)
Até mesmo Jesus, ao ensinar sobre fé, nos mostrou que a
confiança verdadeira não é em palavras, mas em Deus:
“Tende
fé em Deus. [...] Tudo quanto em oração pedirdes, crede que recebestes, e será
assim convosco.” (Marcos 11:22-24)
Repare que o foco está em Deus e na oração, não em
"decretar" algo por conta própria.
9.
A
confissão positiva pode ser benéfica?
Sim, se for equilibrada e bíblica:
Quando é saudável:
- Confessar verdades bíblicas:
“Tudo posso naquele que me fortalece.” (Fp
4:13)
“O Senhor é o meu pastor.” (Sl 23:1)
- Expressar esperança e fé em Deus:
“Ainda que a figueira não floresça... eu me
alegrarei no Senhor.” (Hc 3:17-18)
Quando se torna perigosa:
- Quando transforma desejo pessoal em decreto
autoritativo.
- Quando finge realidade para “ativar fé”.
- Quando ignora a soberania de Deus.
- Quando gera frustração e culpa se não acontecer.
Reflita sobre o texto em Tiago 4:15: “Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto
ou aquilo.”. A chave está em confiar em Deus e em Sua vontade de permitir ou
não.
10.
Outros
exemplos bíblicos mal interpretados
Texto |
Interpretação correta |
Ezequiel 37 |
O profeta só fala o que Deus mandou. |
Romanos 4:17 |
É Deus, não Abraão, que chama à existência. |
Provérbios 6:2 |
Trata de promessas e compromissos imprudentes. |
11.
O
que a Bíblia realmente ensina sobre confissão de fé
Devemos confessar com fé, mas com base nas promessas de
Deus, não em desejos humanos. A verdadeira confissão bíblica:
Bíblica |
Não bíblica |
“Confio que Deus proverá.” |
“Eu decreto que já tenho.” |
“Sou salvo porque creio em Cristo.” |
“Sou próspero porque profetizei.” |
“Sou forte, pois Deus me fortalece.” |
“Sou forte porque eu determinei.” |
“Se
com a tua boca confessares Jesus como Senhor [...] serás salvo.” (Romanos 10:9)
Quais palavras-chave estão faltando nesse versículo?
A chave é crer no coração. O verso completo diz:
“Se
com a tua boca confessares Jesus como Senhor e em teu coração creres que Deus o
ressuscitou dentre os mortos, serás salvo.” (Romanos 10:9)
Ou seja, a confissão só é válida se for acompanhada da fé
verdadeira no coração. A salvação, segundo a Bíblia, não é apenas uma
questão de palavras ditas, mas de fé sincera.
De fato, vemos na Bíblia pessoas sendo salvas, ou seja,
recebendo o Espírito Santo, sem sequer terem tempo de confessar publicamente,
mas que creram de verdade ao ouvirem a pregação da fé. Isso é evidenciado pela manifestação
visível do Espírito Santo, como nas seguintes passagens:
- Atos 10:44-47 – Quando Pedro pregava
na casa de Cornélio:
“Ainda
Pedro falava estas coisas quando caiu o Espírito Santo sobre todos os que
ouviam a palavra.”
(Cornélio e sua casa creram e foram imediatamente batizados com
o Espírito.)
- Atos 16:14-15 – Lídia, que creu ao ouvir Paulo, e foi
batizada com sua casa.
“O
Senhor lhe abriu o coração para atender às coisas que Paulo dizia.”
Esses exemplos demonstram que a fé no coração é essencial e
suficiente para a salvação. A confissão verbal surge como consequência
natural dessa fé, não como substituto e tampouco como um elemento
indispensável em todos os casos.
Além disso, Romanos 10:9 não serve como base para sustentar a
ideia de que a "confissão positiva" tem poder de criar realidades.
O texto está tratando da confissão de fé em Cristo para a salvação, não
de declarações que moldam o futuro ou alteram circunstâncias por meio da
palavra falada.
12.
O
que realmente traz bênçãos segundo a Bíblia?
A Bíblia mostra claramente o caminho para uma vida abençoada:
1. Obediência à Palavra
“Se atentamente ouvires [...] todas estas
bênçãos virão sobre ti.” (Dt 28:1-2)
2. Viver pela fé
“O justo viverá por fé.” (Rm 1:17)
3. Buscar o Reino em primeiro lugar
“Buscai primeiro o Reino...” (Mt 6:33)
4. Orar segundo a vontade de Deus
“Se pedirmos [...] segundo a sua vontade, ele
nos ouve.” (1Jo 5:14)
5. Esperar com paciência e confiança
“Entrega o teu caminho ao Senhor...” (Sl
37:5)
6. Submeter-se
humildemente a Deus
“Sujeitai-vos,
pois, a Deus.” (Tiago 4:7)
Conclusão: Cristo, e não o homem, é o centro
Jesus Cristo é o Verbo, o poder criador, a Palavra que sustenta
tudo. Não fomos chamados para criar com palavras, mas para crer,
obedecer e orar com fé.
“Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo
subsiste.” (Cl 1:17)
Deus deseja que tenhamos uma fé viva, mas essa fé se
expressa em oração, obediência e confiança na vontade do Pai : não em
tentativas humanas de controlar o futuro com palavras.
Devemos declarar, sim: a Palavra de Deus, suas promessas,
sua verdade. Mas isso é confessar fé, não decretar realidade.
Resumo final: Contrapondo a crença popular com a verdade bíblica
FALSA CRENÇA |
VERDADE BÍBLICA |
“Minhas palavras criam meu futuro” |
“A vontade de Deus determina tudo” (Pv
16:1-3) |
“Eu decreto minha bênção” |
“Eu oro e confio no Senhor” (Fp 4:6-7) |
“Minha fé move tudo” |
“Minha fé descansa em Deus” (Sl 37:5) |
“Deus me deu poder criador” |
“Cristo é o poder de Deus, o Verbo eterno”
(Jo 1:1-3) |
Frases bíblicas que revelam submissão verdadeira:
“Se o Senhor quiser, viveremos...” (Tiago 4:15)
“Se achar eu graça aos olhos do Senhor...” (2Sm 15:25-26)
“Quem é aquele que diz, e assim acontece, quando o Senhor o não
mande?” (Lm 3:37)
“Isso faremos, se Deus permitir.” (Hb 6:3)
Outras: Provérbios 19:21, Atos 18:21, Romanos 1:10, Romanos
15:32, 1 Coríntios 4:19, 1 Coríntios 16:7, Hebreus 6:3
Ensinamento Final
Sim, nossas palavras têm poder moral e relacional, e
devemos confessar a Palavra de Deus com fé. Mas só Deus tem poder criador.
Podemos pedir, confiar, declarar Sua verdade: mas jamais tentar ocupar o
lugar dEle como autores do futuro.
“Nada é impossível para Deus”: e é Ele quem diz: “Haja
luz”, “haja cura”, “haja vitória”. A chave não é “fingir” que vai acontecer ou
que está acontecendo, não temos poder de criar nada, a chave é orar a Deus, que
tem esse poder.
Nossa missão é orar, crer e esperar nEle.
A confissão positiva tem mais poder de te iludir do que de mudar circunstâncias.
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