No primeiro capítulo de Efésios, Paulo descreve o plano de Deus,
estabelecido desde a fundação do mundo, para eleger o seu povo (Ef 1:4). Também lembramos a razão pela qual Paulo escreve essa carta:
a igreja de Éfeso havia dado um bom testemunho, e Paulo ficou sabendo disso;
porém, ele também tomou conhecimento de que os irmãos estavam desanimados e
aflitos por causa de sua prisão, como o próprio apóstolo reconhece mais adiante
(Ef
3:1; Ef 3:13). Isso causou abatimento entre
os crentes que viviam sob perseguição dos judeus. Paulo fora preso por pregar
aos gentios, o que provocou oposição dos seus próprios conterrâneos (At
22:21-22).
Ainda assim, Paulo mostra desde o início da carta que, apesar
das circunstâncias parecerem desfavoráveis, há um plano divino em ação.
Nada surpreende a Deus, nem O faz recorrer a um “plano B”. Desde a eternidade,
Deus escolheu um povo, predestinou esse povo, enviou Jesus
Cristo para resgatá-lo, e enviou o Espírito Santo para selá-lo e cuidar
dele (Ef 1:4-5; Ef 1:7; Ef 1:13-14). Nada foge ao controle de Deus.
A prisão de Paulo, que aos olhos humanos parecia ser o fim do
avanço daquela igreja, na verdade, foi um meio que Deus permitiu para que o
apóstolo alcançasse muito mais pessoas do que alcançaria se estivesse livre. Milhares
ao longo dos séculos foram convertidos por meio das cartas que Paulo
escreveu enquanto estava preso (Fp 1:12-14). Isso também nos faz refletir: muitas situações do passado que
nos entristeceram tornaram-se, com o tempo, motivos de louvor. Aquilo que antes
não compreendíamos, hoje reconhecemos que foi o melhor. E, se ainda não
conseguimos entender determinado acontecimento, é preciso paciência e fé: no
tempo certo, Deus pode nos mostrar como nada escapa à Sua vontade. Descanse
nele, não se atormente pelo passado. Siga em frente, confiando que Deus
trará consolo e a certeza de que tudo está sob o Seu controle (Rm
8:28).
Assim, após falar sobre a eleição e a predestinação do povo
escolhido, e depois de orar para que os olhos do coração dos irmãos
fossem iluminados para conhecerem a Deus profundamente e não de maneira
superficial (Ef 1:17-18), Paulo
inicia o capítulo 2 apresentando o tema da graça.
“1 ¶
Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, 2 nos quais andastes outrora, segundo o curso
deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua
nos filhos da desobediência; 3 entre os
quais também todos nós andamos outrora, segundo as inclinações da nossa carne,
fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos, por natureza, filhos da
ira, como também os demais.
Antes de anunciar a boa notícia da graça, Paulo apresenta a má
notícia. Isso é essencial, porque o evangelho, que significa boa nova,
só é “boa notícia” porque havia uma má notícia a nosso respeito. Funciona como
em situações do dia a dia: levamos o carro ao mecânico temendo um problema
grave, mas ele nos dá a boa notícia de que é algo simples. Ou alguém que
enfrentou um câncer, fez exames, e o médico anunciou a cura. A boa notícia só
existe porque houve antes uma má notícia.
Assim é o evangelho: só há graça porque estávamos perdidos;
só há vida porque estávamos mortos (Rm 6:23). E Paulo deixa clara essa condição: estávamos em um estado do
qual jamais poderíamos sair por nós mesmos.
Paulo não inicia sua explicação bajulando as pessoas. Ele não
diz o quanto elas são fortes, corajosas, bonitas, capazes ou cheias de
potencial, como muitas pregações modernas fazem. Assim como todos os apóstolos
da igreja primitiva, ele começa falando da graça expondo a má notícia:
éramos
pecadores, mortos em nossos pecados, filhos da desobediência, escravos da carne
e, por natureza, filhos da ira (Ef 2:3, RA).
Não nascemos filhos de Deus; nascemos filhos da ira, e
posteriormente somos adotados por Deus mediante Cristo (Ef 1:5).
“estando
vós mortos nos vossos delitos e pecados” (Ef 2:1, RA)
Imagine um funeral: um pai de família está sendo velado, deitado
no caixão. Amigos tocam seu rosto, filhos o abraçam, as lágrimas da esposa caem
sobre ele, mas ele não sente nada. Não ouve, não vê, não responde,
porque está morto.
Paulo usa essa linguagem para mostrar a condição espiritual do
homem sem Deus:
morto
em seus pecados (Cl 2:13, RA).
O morto não sente Deus, não escuta Deus, não enxerga Deus, não
busca Deus (Rm 3:10-12). Antes de alguém querer a Deus ou decidir por Deus, ele
precisa ganhar vida, ser vivificado (Ef 2:5).
Não precisamos de “cura espiritual”; precisamos de ressurreição
espiritual. Portanto, a ideia de que o ser humano tem plena capacidade e
liberdade natural para escolher a Deus contradiz diretamente o que Paulo está
ensinando. Mortos não decidem; mortos não escolhem.
Por causa do pecado, todas as nossas faculdades foram manchadas:
mente, vontade, arbítrio, decisões, consciência. Tudo está inclinado para o mal
(Gn
6:5).
“nos
quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo” (Ef 2:2, RA)
Paulo afirma que, antes da nossa conversão, “andastes outrora,
segundo o curso deste mundo”. A ideia de ser escravo do mundo está
exatamente contida nessa expressão. Andar segundo o curso deste mundo significa
viver conforme os valores e padrões que ele impõe: vestir-se como o meio social
determina, trabalhar e buscar apenas aquilo que o sistema valoriza, seguir a
multidão em seus pensamentos, hábitos, crenças e estilo de vida.
O mundo dita a identidade, o propósito e a forma de viver das
pessoas e quem segue esse curso está, na verdade, em escravidão. Os verdadeiros
escravos são aqueles que ainda vivem presos ao mundo, e não o contrário, como
muitos pensam ao afirmar que os cristãos seriam escravos das suas crenças.
Jesus ensinou que “todo o que comete pecado é escravo do pecado” (Jo
8:34), mostrando que a verdadeira escravidão é espiritual.
O mundo escraviza, e Paulo declara que, antes de Cristo nos
libertar, andávamos “segundo as inclinações da nossa carne” e vivíamos debaixo
das influências e doutrinas que o próprio mundo nos impunha (Ef 2:3). Somente em Cristo encontramos libertação: “conhecereis
a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8:32, RA).
“segundo
o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da
desobediência” (Ef 2:2, RA)
Não éramos apenas escravos do mundo, mas também escravos de
Satanás.
A palavra “atua” é a mesma utilizada para descrever a atuação do
Espírito Santo nos filhos de Deus (Fp 2:13). Assim, aqueles que não pertencem a Deus têm sua vida
influenciada e dirigida pelo inimigo, o “príncipe das potestades do ar”, isto
é, o governante das regiões espirituais malignas (Ef 6:12).
Não existe neutralidade.
Ou alguém é servo de Deus, ou é servo de Satanás (Jo 8:44).
Até recebermos vida em Cristo, o príncipe dos poderes
espirituais atuava sobre nós.
“filhos da desobediência” (Ef 2:2, RA)
Somos chamados assim porque herdamos a natureza caída do
primeiro casal, Adão e Eva, que desobedeceu a Deus (Rm 5:12).
Não nascemos filhos de Deus, mas descendentes de um par pecador.
Por isso, cada geração nasce inclinada ao mal, desobediente às
ordens de Deus.
“segundo as inclinações da nossa carne,
fazendo a vontade da carne e dos pensamentos” (Ef 2:3, RA)
Antes de Cristo, éramos escravos da carne, dominados pela
nossa natureza pecaminosa.
A carne sempre busca satisfazer seus próprios desejos: comer,
dormir, beber, sexo, conforto, prazer. Muitos desses desejos são legítimos, mas
quando se tornam o centro da vida, transformam-se em ídolos (Cl 3:5).
Em filosofia, isso se chama hedonismo, a busca constante
do prazer.
Vivemos em uma sociedade hedonista, consumista, individualista e
materialista, que só pensa em prosperidade e satisfação pessoal.
Deus pode nos abençoar, mas isso não significa que Ele sempre
fará isso da maneira que esperamos. Hebreus 11 mostra uma longa lista de homens
e mulheres que viveram pela fé, como Abel, Noé, Abraão, Sara, Moisés e tantos
outros, e que, mesmo aprovados por Deus, enfrentaram privações, perseguições e
até a morte sem receberem, nesta vida, o cumprimento das promessas (Hb 11:35–39). Basta
lembrar também de João Batista, considerado por Jesus o maior entre os nascidos
de mulher (Mt 11:11), mas que teve um fim de vida marcado pelo sofrimento e pelo
martírio. Assim, muitos servos fiéis jamais desfrutaram de prosperidade segundo
os padrões humanos, embora fossem profundamente amados pelo Senhor.
“e éramos, por natureza, filhos da ira” (Ef
2:3, RA)
Paulo agora utiliza uma expressão ainda mais forte. Antes éramos
“filhos da desobediência”; agora, “filhos da ira”.
Por causa de tudo o que foi exposto, pecado, escravidão do
mundo, do diabo e da carne, estávamos debaixo da ira de Deus (Jo 3:36).
Não se engane: Deus, neste momento, está contendo sua ira (Rm 2:4-5). Sua
paciência não significa aprovação ao pecado, mas apenas que Ele está adiando o
juízo. A ira já está preparada e reservada para o dia determinado, ainda que,
por enquanto, o pecador caminhe tranquilamente pela vida. Nada de raios caindo
do céu, nem da mão de Deus esmagando o ímpio, nem da terra se abrindo para
engoli-lo. A ausência imediata de punição não é sinal de tolerância divina, mas
de longanimidade, uma oportunidade para arrependimento (2Pe 3:9).
Mas a sua ira está preparada e será plenamente derramada no dia
determinado por Ele (Ap 6:16-17).
A ideia de um Deus que “passa a mão na cabeça dos ímpios” é
falsa. Deus odeia o pecado, e todos os que permanecerem debaixo de sua ira
sofrerão a condenação eterna.
A condição da humanidade
Esta é a condição natural de toda a humanidade:
– pecadores,
– mortos em delitos,
– filhos da desobediência,
– escravos do mundo,
– escravos da carne,
– e filhos da ira.
Se alguém perguntar:
“O que preciso fazer para ir ao inferno?”
A resposta é:
Nada. Já estamos a caminho.
Se a mensagem da Bíblia terminasse aqui, só restaria fazer o que
Paulo menciona em outro texto:
“comamos e bebamos porque amanhã morreremos”
(1Co 15:32, RA).
MAS, e essa é a virada gloriosa da
mensagem, o verso 4 inicia com a palavra que muda tudo:
“mas Deus…”
A partir daqui, Paulo revela a esperança que dá sentido ao
evangelho.
4 ¶
Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos
amou,
Mas
Deus
Diante daquele cenário terrível em que Paulo descreve o estado
do homem, morto em pecados, escravo do mundo, da carne e do diabo, e debaixo da
ira de Deus, surge uma luz.
A palavra mas, ou “contudo”, ou “porém”, introduz a
intervenção divina.
Deus interveio.
Não você, não eu, não qualquer pessoa.
Deus tomou a iniciativa.
Não houve cooperação alguma da nossa parte. Como poderíamos
cooperar com Deus na salvação estando mortos (Ef 2:1)? Como
poderíamos colaborar sendo escravos (Rm 6:17)?
Por isso Paulo diz: mas Deus. Ele entra na história e faz
aquilo que jamais poderíamos fazer.
Rico
em misericórdia
Paulo afirma que Deus não é apenas misericordioso, mas rico
em misericórdia.
Uma boa ilustração, contada pelo rev. Augustus Nicodemus,
descreve um pequeno rato que estava destruindo seus alimentos e até mesmo
roendo seus livros. Depois de muito tempo tentando capturar o animal, ele
finalmente conseguiu prendê-lo pela pata traseira em uma ratoeira pequena. Mas
quando ergueu a ratoeira à altura dos olhos, o ratinho olhou diretamente para
ele, e naquele instante, movido de compaixão, decidiu soltá-lo.
Isso é misericórdia: quando temos razão suficiente para
condenar, mas ainda assim decidimos perdoar e libertar.
Deus, sendo rico em misericórdia, possui toda razão para
condenar toda a humanidade (Rm 3:23). Mas,
em vez disso, Ele nos perdoou e decidiu agir em nosso favor (Tt 3:5).
A
partir dessa rica misericórdia, Deus age em nós de três maneiras
Paulo descreve três ações poderosas que Deus realiza em nós por
meio da graça:
1-
Deus nos deu vida
“5 e,
estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, pela
graça sois salvos.” (Ef 2:5, RA)
Aqui entra aquele “mas Deus”.
Mesmo mortos, Deus nos deu vida.
Não nos ressuscitamos a nós mesmos. Não fomos despertados porque
“queremos” despertar. Isso acontece porque Deus teve misericórdia e decidiu nos
vivificar. O poder de regeneração não parte de nós, mas de Deus, operando por
meio de Cristo (Jo 6:44; Cl 2:13).
Paulo já antecipa seu
argumento: não há mérito humano.
A salvação é totalmente pela
graça. Nada vem de nós. Tudo vem dEle (Ef 2:8–9).
“6 e, juntamente com ele, nos
ressuscitou...” (Ef 2:6a, RA)
Antes escravos do pecado,
agora somos ressuscitados com Cristo para uma nova vida (Rm 6:4).
Já não somos os mesmos. A
antiga condição morreu, e uma nova realidade começou.
3 -
Deus nos fez assentar nos lugares celestiais
“... e
nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus” (Ef 2:6b, RA)
Agora não somos mais filhos
da desobediência nem filhos da ira (Ef 2:2–3). Somos adotados por Deus (Ef 1:5).
Mais do que isso, Ele nos fez assentar com Cristo nos lugares
celestiais, uma posição de honra, comunhão e segurança espiritual.
Cristo está assentado à direita de Deus (Ef
1:20), e nós, unidos a Ele, participamos dessa realidade.
Não depende de nós.
Não merecemos.
Depende inteiramente dEle.
Por que Deus fez isso?
Paulo responde:
Deus faz tudo isso para a
Sua glória (Ef 1:6).
para mostrar, ao longo das eras, a riqueza da Sua graça.
Fomos criados com livre arbítrio, mas o perdemos ao desobedecer
no paraíso (Rm 5:12). E nos séculos
vindouros, ao olharmos para trás, glorificaremos Deus pela misericórdia e graça
que Ele derramou sobre nós em Cristo. Nada do que fazemos nos dá motivo para
glória própria. Há milhares de pessoas, em todos os
tempos e lugares, com mais capacidades do que nós em qualquer área. Não podemos
nos exaltar em nada. Mas Deus, o único Deus, Criador de todas as coisas, sim,
Ele pode ser exaltado. E tudo que Ele fez é para o louvor da Sua glória
(Ef
1:12).
Paulo encerra essa seção apresentando três conclusões
fundamentais:
1. Somos salvos pela graça,
mediante a fé
A salvação não é alcançada por méritos, esforços ou obras
humanas. Ela é inteiramente pela graça de Deus, recebida mediante a fé. Nada em
nós é capaz de gerar vida espiritual. A fé pela qual cremos não nasce de nossa
própria capacidade; ela é resultado da ação de Deus em nós.
2. “Não vem de vós”: até mesmo a fé é dom de Deus
Paulo deixa isso explícito: “e isto não vem de vós; é dom de
Deus” (Efésios 2:8). Isso inclui a
fé. Não nasce do homem morto em seus delitos (Efésios 2:1); nasce da graça
regeneradora.
“Vinde
a mim todos os que estais cansados e oprimidos” (Mateus 11:28 RA).
A maioria passa e nem
enxerga. Mas um deles lê, sente-se chamado e entra. Ao entrar, olha para trás e
vê outra frase:
“Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me
enviou, não o trouxer” (João 6:44 RA).
Do lado de fora parece que a
decisão foi nossa; do lado de dentro entendemos que tudo foi Deus quem fez.
3. Somos salvos para boas obras
10 “Pois somos feitura dele, criados em
Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que
andássemos nelas.” (Efésios 2:10 RA)
E mais: até essas obras
Deus já preparou de antemão. Ou seja, não precisamos inventar caminhos
próprios; apenas andar naquilo que Ele já planejou.
Conclusão Geral
1. A salvação é totalmente pela graça.
O maior pecador pode ser
salvo, pois a salvação não depende do merecimento humano, mas da misericórdia
divina. Ela vem pela fé, a fé que Deus mesmo concede. Se há arrependimento e
busca por Deus, isso já é evidência da obra da graça em ação (Filipenses 2:13, Romanos 3:11).
2. A graça não anula nossa
responsabilidade.
Embora Deus faça tudo na
salvação, Ele nos chama a viver em arrependimento, fé e boas obras. Deus não
crê no nosso lugar; nós cremos, movidos pela graça que Ele nos dá.
3. A maior segurança do crente:
Somos salvos pela graça, não
por obras. Nada pode mudar isso. Como Jesus disse:
“O que vem a mim, de modo nenhum o
lançarei fora” (João
6:37 RA).
Busque a Deus. Cultive
comunhão com Cristo e com os irmãos. Caminhe nas boas obras preparadas por Ele.
A salvação não se apoia em
nosso desempenho, mas na graça imutável do Deus que “é rico em misericórdia” (Efésios 2:4).